PERÍODO DESAFIADOR
Puerpério: a parte da maternidade que ninguém conta
Natural no pós-parto, período em que o corpo e a mente precisam se reajustar e se adequar às mudanças deve ser encarado de forma vigilante


Todo mundo já ouviu falar que quando nasce uma mãe, nasce uma culpa. Culpa por não poder estar sempre presente, por precisar trabalhar, por desejar algumas horas de sono em meio ao turbilhão de amamentação noturno, culpa por não ser perfeita. Culturalmente, o foco da mãe, de familiares e de amigos costuma ser um só: o bebê. Muitas pessoas esquecem, porém, que essas mulheres, que agora enfrentam a maternidade, precisam de atenção e cuidado, pois estão passando por um dos momentos mais felizes e, ao mesmo tempo, mais difíceis de suas vidas: o puerpério.
Pouco falado, mas profundamente desafiador, este período envolve uma série de mudanças físicas, hormonais, emocionais e comportamentais que podem impactar profundamente a vida da mulher. No puerpério, o corpo tenta voltar ao estado anterior à gestação, enquanto a mente precisa lidar com a chegada de um novo papel - o da maternidade. Um misto de sensações que não é nada fácil de lidar. Um período de adaptação em que o cansaço físico se mistura à vulnerabilidade emocional e resulta em oscilações de humor, choro frequente, sensação de solidão e sobrecarga.
Apesar de natural, o processo ainda é cercado por silêncios e julgamentos, e muitas mães, especialmente as de ‘primeira viagem’, acabam tendo impactos diretos na saúde mental por se depararem com algo que, definitivamente, não esperavam viver com a maternidade, influenciadas, em grande parte, pela cultura da romantização deste período. É como se existisse uma regra: a chegada de um bebê deve estar sempre ligada a um momento de felicidade plena. Na vida real, as coisas não são bem assim.
As mudanças hormonais bruscas somadas à privação de sono, à pressão social, à dificuldade de amamentar e às exigências da maternidade idealizada, podem desencadear quadros de ansiedade, depressão pós-parto ou crises de identidade.
Profissionais especializados em saúde mental materna alertam que é fundamental acolher a mulher no puerpério com empatia e informação, afinal, toda mãe precisa compreender que não é preciso estar feliz o tempo todo, e que tudo bem se sentir perdida ou exausta. Esse é o primeiro passo para encarar esse período com mais leveza e menos culpa. Ter uma rede de apoio ativa, com parceiros, familiares e amigos presentes, também é essencial.

A psicóloga especialista no assunto, Regina Japiá, explica que o puerpério se caracteriza pelo período que se inicia logo após o parto, mas nem sempre ele se manifesta rapidamente. Existe o puerpério imediato, que dura do primeiro ao décimo dia após o nascimento do bebê; o tardio, que se inicia no 11º dia e segue até o 45º, e o remoto, que vai do 45º dia em diante.
Ela destaca também a existência do puerpério emocional, caracterizado pelo período em que a mulher vive a adaptação psicossocial com a chegada do filho, o que acarreta em uma mudança na dinâmica familiar, mudanças emocionais, sociais, mentais e relacionais. Por ter tantas nuances, esse período pode ser mais longo que o esperado, podendo durar até alguns anos após o parto.
A profissional expõe três situações que podem ocorrer com a puérpera. A primeira delas, que é a mais recorrente e costuma acometer de 50% a 80% das mulheres, é a melancolia pós-parto, também conhecido como baby blues, blues ou tristeza puerperal. “Essa situação apresenta como sintomas a tristeza, cansaço excessivo, insônia, sentimento de solidão, preocupação excessiva nos cuidados com o bebê, oscilações de humor, sentimento de insegurança, estresse e hipervigilância. Normalmente, esses sintomas surgem nos primeiros quinze dias do puerpério e vão arrefecendo e perdendo força, de forma que, no vigésimo dia, já não existem mais”, afirma.
No entanto, quando esses sintomas se intensificam ao longo das semanas, ao invés de diminuírem, pode existir uma depressão pós-parto, que acomete de 10% a 25% das mulheres no Brasil. “Esse é um quadro mais grave e mais duradouro, com sintomas como tristeza profunda e prolongada, reações emocionais excessivas e desproporcionais, irritabilidade constante, choro fácil, ansiedade, perda de interesse em atividades que eram anteriormente prazerosas, oscilação de humor, sensação de culpa e inadequação, dificuldade de cuidar o bebê, fadiga extrema, alteração intensa no sono e no apetite, rejeição do bebê e presença de pensamentos homicidas e suicidas”, conta.

Há, ainda, uma terceira forma de manifestação dos sintomas, que é considerado extremamente raro e acomete de uma a duas mulheres a cada mil nascimentos. Trata-se da psicose pós-parto. “É quando a puérpera apresenta confusão mental, alucinações, delírios, comportamento desorganizado, agressividade e pensamentos suicidas ou homicidas”, completa Regina, que destaca que o sinal de alerta deve ser sempre aceso quando a mulher passar a apresentar comportamentos que não tinha antes do puerpério, como quando perde a vontade de fazer coisas que antes adorava.
“Se essa mulher tiver apresentando uma tristeza constante, um choro, uma dificuldade para descansar, mesmo estando extremamente cansada, além de reações emocionais excessivas, ansiedade, alteração no apetite e no sono. Tudo é sinal de alerta e é muito importante que as pessoas que convivem com essa puérpera estejam atentas a isso, porque muitas vezes a própria mulher não se dá conta do que está acontecendo e não procura ajuda. São as pessoas no entorno dela que devem lançar esse olhar de cuidado não só sobre o bebê, mas sobretudo, sobre a puérpera, porque ela é a mãe e a cuidadora do bebê. Se não estiver bem, como vai cuidar bem do bebê?”, questiona Regina.

“O cuidado da minha mãe me salvou”
A advogada e pedagoga Mariana Albuquerque, de 30 anos, tornou-se mãe do Levi há seis meses e sente os impactos do puerpério até hoje. Ela viu a ansiedade se intensificar após o parto e passou a sentir dores frequentes nos pés, para as quais ela busca um diagnóstico até hoje.
“Até hoje não voltei a vestir as roupas que usava antes de engravidar e precisei ir para a psiquiatra devido à ansiedade que se tornou maior depois que o Levi nasceu sinto dores. Sinto dores nos pés e ainda não retomei as minhas atividades profissionais. Lembro que quando eu saí da maternidade, em uma cadeira de rodas e com o Levi no colo, esperando meu o meu marido passar com o carro para me buscar, senti um desespero, uma sensação de impotência e muito medo. Tive vontade de sair correndo naquele momento. Foi um momento de muita angústia. Tinha muito medo de não conseguir cuidar do meu bebê e senti muita solidão também”, relata.
Mariana conta que teve o apoio da mãe no primeiro mês após o parto e da tia no segundo mês, o que ela considera ter sido crucial para que ela não apresentasse sintomas ainda piores. “Esse apoio foi crucial para que eu pudesse ter uma vida o mais próximo do normal, na medida do possível. Minha mãe se preocupava comigo como filha e não como mãe do Levi. Fazia minha comida e pegava o bebê de manhã cedo para que eu pudesse dormir um pouco. Eu tenho absoluta certeza que esse cuidado e amor me salvaram”, destaca Mariana.
Ela conta que buscou ajuda psiquiátrica quando percebeu que alguns sentimentos e sintomas estavam exacerbados, indo ‘além da conta’. “Eu sabia que se eu não buscasse ajuda, eles poderiam se tornar uma doença”, pontua.

“Culpa por querer comer ou fazer xixi”
A microempreendedor Karolyne Silva, de 26 anos, viva a maternidade há apenas 28 dias. Mãe do Enrico, ela conta que o puerpério tem sido a fase mais intensa que já viveu.
“É como se a terra parasse e a sua vida virasse de ponta-cabeça. Muito se fala na gravidez de modo genérico sobre o puerpério, que você não vai conseguir dormir tanto e não vai ter tempo para descansar, mas a verdade é que é tudo muito mais intenso e complicado. Estou vivendo o milagre que sonhei, a delícia de ter um bebê em meus braços, mas ao mesmo tempo uma maternidade dolorida e solitária, com uma vida que depende 100% de você e a culpa por sentir falta de si ou por desejar ser cuidada novamente”, afirma.
Como se não bastasse o processo natural característico do puerpério, Karolyne ainda apresentou uma outra complicação, a cefaléia pós-raqui, o que a faz sentir uma forte enxaqueca quase um mês depois após o nascimento do primeiro filho. E apesar de ser a melhor mãe que o Enrico poderia ter, a autocobrança e a culpa se fazem sempre presentes.
“Às vezes me sinto egoísta por querer dormir um pouco mais, querer um banho ou ir ao banheiro no momento que sento necessidade. Quando estamos grávidas, não pensamos que, em algum momento após o nascimento, vamos querer ficar sozinhas, ou nos sentiremos culpadas por desejar fazer algo simples como comer ou fazer xixi”, afirma.
Karolyne está sendo acompanhada por uma psicóloga e tem feito uso de ansiolítico por recomendação da obstetra. Ela conta que buscou ajuda para evitar que o baby blues evoluísse e se tornasse uma depressão pós-parto.

Informação é munição
Buscar informações sobre o puerpério ainda durante a gestação pode ser fundamental para que as mulheres, especialmente as que estão passando por uma gravidez pela primeira vez, conheçam tudo o que o período pós-parto traz consigo.
“Informação é uma forma de poder, de se blindar de muitos mitos que existem. As mulheres precisam procurar entender as alterações hormonais, físicas, as dificuldades e os desafios predominantes dessa fase de vida. Também indico que elas possam participar de grupo de apoio de mães, compartilhando sua história e ouvindo relatos de outras mulheres. É importante que essa mulher possa se comunicar e não se feche para o que ela está sentindo. Que ela possa ser a primeira pessoa que valide seus próprios sentimentos e os compartilhe com pessoas de confiança. Em todas as etapas da vida, principalmente nessa, não existem emoções e sentimentos que não sejam importantes. Essa validação do que ela está sentindo é um passo importantíssimo para o autocuidado e o cuidado dessa puérpera”, destaca a psicóloga Regina Japiá.
Ela diz que outro ponto importante é que cada mulher respeite o próprio ritmo e se reconheça no processo, afinal, cada mãe vive a maternidade de uma maneira, da forma que é possível vivê-la, dentro de suas realidades.
“É preciso respeitar o processo e entender que essa adaptação vai levar um tempo, vai implicar em mudanças, em desafios. É necessário respeitar e estar aberta para viver esse processo com paciência. Se ela perceber que não está dando conta, que está sendo sofrido, a recomendação é que ela procure uma ajuda profissional. A nossa cultura, em relação à maternidade, traz tudo de uma maneira muito romantizada, muito idealizada. É como o período mais lindo da vida de uma mulher, um período maravilhoso em que ela deve estar extremamente feliz e realizada. Só que nós, profissionais da saúde mental, precisamos respeitar a vivência da maternidade de cada mulher. Quanto mais a gente embarcar nessa idealização e romantização de todo o processo, mais essa mulher vai estar distante de como está sendo esse processo consigo mesma. Se afaste dessa idealização e se aproxime da vida real, da maternidade como ela é para você. Essa mãe precisa começar a entender que está sendo a melhor mãe possível naquele momento”, afirma.