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CULTURA

Festa no cemitério

Em Pão de Açúcar, artista e articulador cultural Beto de Meirus celebra 82 anos pré-inaugurando a própria catacumba: teve discurso, parabéns, bacamarte, seresta e muitos convidados

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Familiares e amigos compareceram à festa, que teve direito a muita animação
Familiares e amigos compareceram à festa, que teve direito a muita animação | Foto: André Dantas/Cortesia

Foi no dia mais movimentado de Pão de Açúcar/AL — uma segunda-feira de feira livre — que o inventivo Beto de Meirus decidiu celebrar, à sua maneira, seus 82 anos de vida: com a pré-inauguração da própria catacumba. O evento, marcado para a noite do dia 7 de abril, data de seu aniversário, foi realizado no cemitério do povoado de Meirus, aos pés da serra onde ele nasceu, cresceu e construiu sua história. A notícia percorria a cidade enquanto o artista estava nos últimos preparativos para a grande revelação, que teve direito a laço cortado, cortina aberta e toda a pompa de uma estreia solene.

Essa ‘obra final’ tem ocupado Beto há cerca de quatro anos. Caprichoso como é, deixou o cemitério enfeitado, com cor para todo lado. Bustos dos pais, foto dos filhos, folhetos com poesias e rimas, títulos, obras e um desabafo: não ter sido reconhecido como Mestre do Patrimônio Vivo do Estado. Fez sua inscrição duas vezes, mas nunca foi selecionado.

Com longa trajetória como artista e articulador cultural, Beto desde menino foi incentivado pelo pai, sua grande referência. Primeiro foi seleiro e poeta, seguindo os passos do velho. Adulto, tornou-se carnavalesco, artesão, trovador, escultor, pintor, seresteiro, cordelista, músico e bacamarteiro. Continuando e recriando tradições do povo sertanejo.

A história do poeta com aquele cemitério é antiga. Acompanha sua trajetória desde a doação do terreno pelos seus pais à comunidade; passando pelas dormidas entre os túmulos, enquanto brincadeira de criança; até chegar às últimas três décadas nas quais o cemitério tem sido palco das tradicionais serestas nas noites de finados, em todos os dias 2 de novembro.

Beto de Meirus fez da pré-inauguração do próprio túmulo uma grande festa
Beto de Meirus fez da pré-inauguração do próprio túmulo uma grande festa | Foto: André Dantas/Cortesia

“O meu povo todo era músico. Quem não tocava, cantava. Tem muito seresteiro ali enterrado. Meus pais, meus tios… Há mais de 30 anos eu vou ao cemitério fazer seresta pra eles na noite de finados. Eles gostavam tanto que pediam: ‘quando eu morrer, vá cantar na minha cova’”, contou Beto, revelando a naturalidade daquilo que, a princípio, parecia mais uma de suas excentricidades.

O discurso de abertura, à altura de mestre, veio em forma de verso. Em cerca de 15 minutos, Beto rememorou os belos dias de Meirus e fez críticas afiadas aos impactos das transformações na natureza.

Pé da serra de Meirus, aguada do marí, pousada dos juritis e das borboletas azuis. O beija-flor me seduz, vestido de todas as cores, foi bom medir os valores do canário ao assanhaço. Ouvir o canto dos paços, sentir o cheiro das flores. Foi muito bom madrugada ouvir cantar a acauã. Foi bom ouvir de manhã o canto da passarada. Ver a floresta enfeitada com flores, ramos e batata. Ver o brilho da cascata, ver a fauna com certeza dominando a natureza sobre a beleza da mata. Mas o que foi que aconteceu que ninguém ouve mais cantar o pintassilgo e o chofreu, até jesus-meu-deus, o famoso sabiá, a magia do canção e o bem-te-vi no facheiro. A turrica e o azulão avisando aos companheiros a vinda do gavião. Cadê o papa-capim? Cadê o guriată? O grito do jaçanã? O jornalista, o vim-vim que notícia traz pra mim? A natureza do boêmio cololou, o impossível broiou, esse não tem disciplina. Cadê meu galo de campina e o velho fogo-pagou? Pra onde foi o preá, a seriema, o jacu, o papagaio e o nambu? O peba, o tamanduá, guaxinim, teiú, cassaco, cutia, sagui e macaco, tudo existiu no passado. O punaré, o cangambá, a onça, o gato pintado, o porco, a cobra, o veado. Hoje tudo é diferente, a mata foi destruída, a fauna foi perseguida, existe pouca semente. Este pouquinho existente vai se acabar com certeza, que o progresso e a riqueza neste mundo de ilusão traz a civilização destruindo a natureza.

O poeta afirma ser baseado em uma “história verídica” da serra de Meirus, descrevendo toda a diversidade da natureza e lamentando que o ‘progresso’ tenha acabado com as riquezas da região.

Imagem de Beto de Meirus na própria catacumba
Imagem de Beto de Meirus na própria catacumba | Foto: André Dantas/Cortesia

“Este cemitério foi meu pai quem doou o terreno. Eu trazia os cavalos para cá. Quando ele queria me dar umas palmadas era pra cá que eu corria. Dormi várias vezes nesta pedra à noite, foi por isso que eu fiz o meu túmulo aqui em cima da pedra”, disse o mestre enquanto revisitava as memórias e era aplaudido pelos convidados que se espalhavam por entre as catacumbas.

Naquela noite, cerca de 150 pessoas — entre familiares, amigos, povo de Meirus e clientes — ouviam, entre uma homenagem e outra, os tiros de bacamarte, que segundo Beto, serviam “pra acordar as almas”. A família de bacamarteiros mantém a tradição viva, hoje seguida por mulheres e homens, filhos e netos do mestre.

Escravo do Amor, amante da cultura

Autointitulado “Escravo do Amor”, título que nasceu de um verso e logo se espalhou. Casou com aquele espírito romântico e faceiro das noitadas no Sertão. Teve 11 filhos e hoje já é trisavô. Entre suas queixas: o desamor. “Tão romântico que eu fui, tanto que eu amei, tanto que eu me entreguei e hoje não tenho um amor”.

Beto tem declarado sua sofrência em versos. Convido aqui, caro leitor, a conhecer o cordel “Lamento de Um Idoso”, uma rima para maiores de 18.

Beto de Meirus deu vida ao personagem Jaraguá
Beto de Meirus deu vida ao personagem Jaraguá | Foto: André Dantas/Cortesia

Dentre suas realizações culturais, estão o bloco carnavalesco As Chaleirinhas, com mais de 50 anos de história; e o Jaraguá, com cerca de 30. É o mestre Beto de Meirus quem dá vida ao personagem no Sertão de Alagoas. “Os mais velhos falavam do Jaraguá. Diziam que a cabeça era de cavalo e o corpo era de pau, não era assim como eu faço”. O artista já criou vários desses personagens super elaborados. O mais recente está em seu ateliê: todo articulado, balança a cabeça, o rabo, acende os olhos, tem rodas para locomoção e mesa de som. Em alto e bom tom, solta um estranho relinchado e canta

“Lá vem, lá vem, lá vem o Jaraguá, um bichinho bonitinho que chegou pra vadiar. Com cabeça de cavalo e o paço de canguru, quem fez esse danadinho foi o Beto de Meirus. Essa noite não dormiu a comer a relinchar com saudade da eguinha que não veio paquerar. Raça de girafa e jegue, onça, bode e bacural a alegria das crianças na festa de carnaval”.

Beto já foi vereador e presidente da Câmara de Pão de Açúcar, período que também contribuiu muito para a cultura local
Beto já foi vereador e presidente da Câmara de Pão de Açúcar, período que também contribuiu muito para a cultura local | Foto: André Dantas/Cortesia

Seu trabalho, por décadas, foi dar continuidade ao ofício que aprendeu com o pai, criando indumentárias para vaqueiros, como sela, arreio e gibão. De seleiro passou a artesão de bancos, baús, bolsas, espelhos e adornos, transição que, segundo Beto, ocorreu devido à extinção do seu trabalho original. Precisou se reinventar. Seguiu produzindo no couro, mas com nova proposta. Hoje seu trabalho se espalha pelos interiores das casas Brasil adentro e mundo afora.

O Seleiro de Beto de Meirus
O Seleiro de Beto de Meirus | Foto: Patrícia Mendonça

Na rota do turismo do povoado Ilha do Ferro, Beto é parada obrigatória. Ver o mestre trabalhando o couro é assistir ao fazer manual das coisas: o tempo que demanda, a matéria que se transforma, o saber popular. Do martelo pesado que carimba o couro, à espiga de milho que o amacia. Tudo ali é ensinamento. É a delicadeza dos saberes de um mestre e também a força, física e ancestral, da construção de um legado.

Membro da Academia de Letras de Pão de Açúcar, com livro publicado intitulado de “Verdades em Versos”, Beto acaba de ser o grande homenageado no Encontro de Cordelistas que reuniu rimadores de todo o sertão alagoano, ocorrido no último sábado.

Último pedido

"Quero convidar todo mundo para o meu enterro. Já fiz minha catacumba, estou pronto para morrer a qualquer momento. Quem quiser vir, já está convidado", disse o mestre, arrancando sorrisos e aplausos enquanto era celebrado como o grande mestre que é. Só lhe falta, ainda, o reconhecimento oficial.

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